Passa palavra: 20 de junho: a Revolta dos Coxinhas

Florianópolis

Terça-feira, 18 de junho

Na terça-feira houve uma manifestação convocada pelo Facebook por um estudante da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) entusiasta de revoltas. Na empolgação com o que ocorria em São Paulo e no resto do país, ele resolveu criar o evento na rede social na noite de segunda-feira. O chamado à manifestação incluía diversas pautas: a tarifa zero, as PECs, a corrupção, o blablablá e terminava com um indigesto “pelo que você quiser”. Terça-feira à noite a manifestação reuniu pelo menos 20 mil pessoas. Florianópolis tem 420 mil habitantes e até então nunca havia visto algo com aquele tamanho.

Um parêntesis. Participei, desde 2004, de todas as campanhas contra o aumento da tarifa aqui na ilha, com a exceção da de 2010. Apenas durante a Revolta da Catraca de 2004 a Polícia Militar se mostrou “pacífica” (a prefeita era oposição ao governador e havia eleição municipal naquele ano), mas mesmo lá apanhamos todos quando resolvemos desobedecer o acordado e ir ocupar as pontes da cidade. Em todas as outras campanhas por redução da tarifa a PM foi rigorosamente truculenta. Fecha o parêntesis.

A manifestação parecia um bloco de carnaval. Todos de branco, felizes e orgulhosos, cantando o hino nacional e protestando contra qualquer coisa. Por poucos momentos vi a turba cantar as conhecidas músicas do Movimento Passe Livre (MPL) e quando isso acontecia era por um brevíssimo momento. A manifestação que se concentrara à frente do Ticen (o terminal central de ônibus) percorreu o caminho em direção à Assembleia Legislativa (que foi onde a encontrei) e de aí atravessou a avenida Mauro Ramos em direção à avenida Beira-mar.

Somente durante as Revoltas da Catraca de 2004 e 2005 conseguimos alcançar a avenida Beira-mar. A partir de então sempre nos foi impossível botar os pés lá. Acontece que na manifestação de terça-feira não houve impedimento algum. Aquilo estava por demais estranho. O próprio contingente policial era irrisório para o tamanho da manifestação. Mas, por outro lado, a manifestação não apresentava perigo algum à ordem. Quem bloqueava as ruas e coordenava tudo era a PM e assim o foi até o fim.

Percorrendo a Beira-mar era visível o desânimo das pessoas de esquerda que eu encontrava pelo caminho. Estavam isolados, em pequenos grupos, perguntando-se que coisa era aquela. Alguns desanimados, outros emputecidos, mas todos, sem exceção, engolidos pela Marcha dos Coxinhas. Da Beira-mar passamos facilmente à ponte Colombo Salles, que já estava fechada para o trânsito. Tudo organizado pela PM. Não foi a manifestação que ocupou a ponte. Foi a PM que fechou a ponte para os coxinhas irem lá bater fotos para postarem no Facebook. Era por volta de 20h30 quando todos chegaram à ponte e já às 20h45 começava a dispersão. Parecia na verdade que todos estavam apressados para chegar às suas casas e não perderem a novela.

Caímos no desânimo e às 21h já estávamos na Travessa Ratcliff, pequeno refúgio da boemia da cidade, afogando as mágoas na cerveja. Às 21h30  apareceu uma turma um pouco mais animada, porque haviam feito um catracaço no Ticen. Depois fiquei sabendo que a polícia deixou todos eles fazerem aquilo e que o próprio presidente do sindicato das empresas de ônibus já havia liberado os ônibus gratuitamente aos manifestantes. Não houve confronto algum. Tudo aquilo não passara de encenação.

A cerveja desceu amarga aquela noite. Não era só porque havíamos sido engolidos pelos coxinhas. Mas porque havíamos sido completamente derrotados no campo de batalha que sempre foi o nosso: as ruas. Ao contrário do que ocorria em outras cidades, onde o MPL ou o similar havia começado as manifestações para depois elas serem apropriadas e as pautas diluídas, em Florianópolis logo a primeira manifestação foi coxinha. Completamente coxinha.

Quarta-feira, 19 de junho

Por conta de tudo o que havia acontecido na noite anterior, os partidos e coletivos de esquerda de Florianópolis resolveram articular-se para a manifestação que estava marcada para quinta-feira. O MPL decidiu antecipar em uma semana o debate sobre tarifa zero que iria promover a fim de tentar pautar a discussão em torno da questão da mobilidade urbana. E foi marcada com todos os grupos de esquerda uma reunião ampla após esse debate.

O debate contou com um número surpreendente de pessoas. Havia mais de duzentas; o auditório do Centro de Filosofia e Humanas da UFSC ficou completamente lotado. Quem conhece o dia a dia do MPL sabe como é difícil ter tantos interessados no assunto. A reunião que seguiu o debate foi algo que nunca vi. Toda a dita esquerda (PTPCdoBPCB, PSTU, PDT, Coletivo Anarquista Bandeira Negra, Brigadas Populares, Juventude Comunista Avançando, MPL, feministas e independentes) decidiu unificar sua participação no ato do dia seguinte sob a pauta da tarifa zero. A Frente de Luta Pelo Transporte, pela primeira vez desde que foi criada em 2005, decidiu agir como uma coisa só. Ficou acordado que cada partido poderia levar sua bandeira — ora, o PSTU havia sido hostilizado no ato de terça-feira, tendo suas bandeiras rasgadas e uma militante agredida — e que teríamos uma postura pedagógica no ato, procurando dialogar com a massa difusa que certamente iria à manifestação.

Quinta-feira, 20 de junho

O dia amanheceu chuvoso e frio. Muitos da esquerda imaginavam que isso esvaziaria a manifestação. Mas já no meu trabalho percebi que não. Cheguei ao trabalho e todos estavam animados para a manifestação. Uma colega apareceu com uma camiseta onde estava escrito “Sou brasileira e não desisto nunca”. Disse que tinha comprado no site do Luciano Huck. Esse é o ambiente onde trabalho. Coxinhas, coxinhas por todas as partes. E lá estavam eles, preparando-se para o grande ato. Todos com câmeras e capas de chuva, além de bandeiras do Brasil e cartazes contra a corrupção. E como tanto o prefeito quanto o governador estavam apoiando a manifestação (ambos do PSD), fomos todos liberados do trabalho às 16h30.

Dirigi-me ao Terminal Central de Ônibus (Ticen), mas ainda no caminho uma amiga avisou por mensagem que um confronto já se havia iniciado. Um grupo tentara tirar as bandeiras de quem ali estava. Cheguei perto das 17h à concentração. O clima era tenso. A Frente de Luta Pelo Transporte (umas 300 pessoas àquela hora) estava no passeio da av. Paulo Fontes, em frente ao Ticen, completamente envolvida por pessoas hostis às bandeiras de partido. E isso que a concentração fora marcada para às 18h. Tentamos intervir no grito, substituindo o “sem partido!” dos coxinhas raivosos por “sem tarifa!” ou “sem catraca!”, mas apesar da coisa ter surtido efeito, os partidos, amedrontados, decidiram afastar-se dali. Há um vídeo desse episódio, pode ser visto aqui.

Depois disso, a PM formou um cordão de isolamento entre a Frente e os demais manifestantes. E fomos alvo de provocadores. Um sujeito apareceu ao nosso lado com um cartaz onde se lia: “Militares, voltem para botar ordem neste país!”. A coisa ia mal. Rapidamente resolvemos designar um pequeno grupo para ir aos manifestantes e convencê-los a juntarem-se ao nosso grupo. Durante todo o tempo éramos observados por figuras estranhas, não sei se P2 ou fascistas organizados. Quando se deu isso, eram já 18h e a Marcha dos Coxinhas partiu para o outro lado em direção à Assembleia Legislativa. Como muita gente acabou chegando depois da partida dos coxinhas, acabamos conseguindo juntar bastante gente perdida ao nosso grupo e forçamos um retorno para a frente do Ticen. Não sem um pouco de conflito e muito grito pedindo unificação e foco na tarifa. Organizamo-nos num grupo relativamente coeso de 10 mil pessoas aproximadamente e partimos em direção às pontes.

O caminho até às pontes foi marcado por diversas tentativas de insulto e agressão aos partidos que ali estavam. A ação conjunta da Frente de Luta Pelo Transporte, contudo, evitou maiores confrontos. Entramos na ponte cantando, gritando e pulando pela tarifa zero, numa demonstração nunca antes vista na cidade. Ocupamos as duas pontes por um bom tempo. No retorno à ilha, já na cabeceira da ponte, nos encontramos com os coxinhas que acabavam de chegar, vindos da av. Beira-mar.

Quem estava com bandeira de partido foi hostilizado, perseguido. O principal alvo eram os militantes do PSTU. Aos gritos de “PSTU, vai tomar no cu!”, muitos grupos perigosamente se aproximavam do nosso espaço. Como saí do trabalho direto para a manifestação, estava vestido de coxinha, praticamente um militante à paisana. Nessa hora um desses bombadinhos me puxou de canto e convidou para espancar o povo do PSTU. A coisa não ia nada bem. Não demorou muito até um grupo agredir fisicamente os trotskistas.

Depois de sairmos da ponte, fomos em direção à Praça XV. De lá seguiríamos à Prefeitura. Por falta de organização, porém, nossa manifestação se desarticulou. Parte voltou ao Ticen, parte foi à Prefeitura e outra parte foi ao gabinete do prefeito. Espalhados pelo centro da cidade, muitos sem saber onde exatamente ficava a Prefeitura, a manifestação dispersou. Florianópolis tem esse problema, notadamente com os estudantes da UFSC, que só conhecem os arredores da Universidade. Conhecem muito pouco o centro. Certamente muitas manifestações teriam outra configuração se os seus participantes compreendessem minimamente a geografia do centro da cidade. O grupo que se dirigiu ao gabinete do prefeito teve ainda de enfrentar o ódio antipartidário dos coxinhas e correr dali para não terem o mesmo destino dos militantes do PSTU.

A PM estima em 30 mil o número de pessoas presentes na manifestação de quinta-feira. Mas outras estimativas falam em 50, 70 ou até 100 mil pessoas. Independentemente do número, certamente havia mais coxinhas do que pessoas organizadas pela Frente de Luta Pelo Transporte nesse ato. E os coxinhas estavam organizados. De forma difusa certamente. Mas costurando com pautas genéricas e moralistas o tecido social onde um certo tipo de direita adora desfilar.

Parte relativa a Floripa retirada de: http://passapalavra.info/2013/06/79726

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