21 de junho, 2013: 1 e 1/5

Aqui em Floripa tivemos duas manifestações, ou melhor, 1 e 1/5, porque na segunda delas, ontem, muito pouca gente realmente se manifestou. Digo pouca e não nenhuma porque ouvi dizer que um grupo pequeno tentou, depois que os “manifestantes” desinteressados foram embora, realmente ocupar a ponte (e não apenas passear turisticamente por ela). É claro que esse grupo apanhou da polícia, pois saía do esquemão pré-aprovado de manifestação (coisa bizarra é uma manifestação pré-aprovada, não?). Não tenho confirmação dessa informação, infelizmente eu já tinha ido embora decepcionada e não achei nada aqui pelo face. Se alguém tiver informações, agradeço…
Fora esse episódio, em geral, ontem foi um dia triste, com cara de fim de sonho. Parecia final de jogo, saída de estádio (o maridão até gritou um sarcástico “Furacão!” em homenagem ao nosso amado Atlético Paranaense, tirando sarro da postura dos “manifestantes”). Era triste ver as pessoas andando sem rumo, sem cartazes e sem canções, os poucos gritos eram os tão falados “sem partido”. O que, diga-se de passagem, é completamente incompatível com os “Fora Dilma” que se via por lá. Fora Dilma significa a volta do que já foi, como se FHC, Sarney, Aécio, Alckmin, etc fossem melhores? Não, não eram melhores, mas talvez também não eram piores, porque o que se tem parece exatamente a mesma coisa que se tinha. São eles mesmos que estão por aí, pois ela está com eles. E essa é provavelmente a maior derrota da esquerda no Brasil: ver o PT virar o PSDB. 
Outra coisa muito incongruente com os gritos de fora partido é a demonstração de patriotismo da marcha. Na terça-feira, eu havia (ingenuamente, agora eu sei) interpretado esses gritos como uma manifestação de rebelião anárquica, contra o sistema político “democrático” que diz nos representar. Mas agora concordo com as leituras que interpretam esses gritos como fascistóides e apolíticos, no pior sentido que o termo pode ter. Ainda mais quando conjugados com os orgulhos de ser brasileiro que eram entoados em tom xenofóbico. Num momento desses, eu cantei “sou brasileiro, sem muito orgulho, mas com muito amor”, e um moleque de 15 anos me olhou com os olhos esbugalhados como se eu fosse uma herege. Cantei sem orgulho porque pra mim sentir orgulho de nação é sentir orgulho de todo o projeto de exclusão que ela envolve, é mesmo etnocentrismo. O que é orgulho senão raiz de fascismo? Mais que isso, o que significa ser brasileiro, quando os primeiros brasileiros são assassinados pelos ruralistas Brasil afora, quando veem suas terras inundadas por Belo Montes da vida sob a cumplicidade calada dos outros brasileiros todos? Essa cumplicidade é tão calada que numa manifestação dessas, enquanto vivenciamos um lento genocídio indígena, pouquíssimos cartazes falam a respeito. E olha que Florianópolis está cercada de aldeias e de confrontos, como os que enfrentam os Guarani, da região de Palhoça. Mais que isso, não é preciso nem sair do centro da cidade, basta caminhar pelo calçadão da Felipe Schmidt, pra ver como os governos catarinenses tentaram transformar indígenas em mendigos pedindo esmolas, comidas e roupas, tentando vender seu lindíssimo artesanato, como seres invisíveis aos olhos dos passantes apressados. 
Mas muito além da questão indígena, porque podem dizer que não era a pauta da manifestação (ainda que eu ache que pauta é uma coisa ridícula até no jornalismo, quem dirá numa manifestação…), é preciso sempre e ainda resgatar a questão do transporte, o estopim disso tudo. Eu não vi cartazes, entrevistas ou gritos de guerra sobre o lucro das empresas de ônibus. Poxa, não basta abaixar o valor da tarifa apenas aumentando o subsídio do governo com o nosso próprio dinheiro dos impostos, é preciso mexer no faturamento líquido bizarro dessas empresas e obrigá-las a melhorar a qualidade do transporte. Mais que isso, é preciso que ele seja realmente público e de qualidade. Se a tarifa é tão alta no Brasil é porque o custo dessas empresas é muito baixo (daí sua qualidade ser tão ruim) e o seu lucro enorme. Como preveem os “lindos” contratos dos governos (de diferentes instâncias) com as empresas terceirizadas no Brasil, trabalhar para o governo é um jeito de ficar muito rico ilicitamente. Transporte, saúde e educação, serviços que são um direito do povo, precisam ser públicos. E pra quem diz que tarifa zero é utopia, basta uma googlada pra ver muitos exemplos pelo mundo; eu presenciei um deles no centro de Seattle, onde o ônibus (em ótimo estado) era gratuito.
Sobre os manifestos contra a Copa e a Fifa eu concordo em número, gênero e grau. A Copa é um ótimo exemplo dos valores invertidos no investimento estatal. E isso também ficou muito claro durante os manifestos, quando a polícia, sob o comando da Fifa e de suas marionetes governamentais, impediu, da forma mais violenta possível, que os manifestantes de BH tentassem chegar no Mineirão. O estádio é mais importante que qualquer coisa, inclusive que a vida e a integridade física da piazada se manifestando. Mais importante até do que os doentes em um hospital. Pois (se eu não me engano foi no Rio) a polícia jogou bombas de gás num hospital em pleno funcionamento só porque manifestantes (muitos deles, feridos) tentavam abrigo. Quer dizer, um estádio deve ser protegido, um hospital bombardeado. Como diziam alguns cartazes, “quando seu filho ficar doente, vá ao estádio”.
Acho que os exemplos de luta, no país todo, me fazem sair com otimismo disso tudo, mesmo após a decepção de ontem. Nada apaga a beleza daquela larva de gente tomando a ponte aos berros na terça-feira, nada apaga a verdade do grito de que, pelo menos naquele momento, a “Ilha da Magia é do povo e não da burguesia”, nada apaga o fato de que paramos a cidade, de que paramos muitas cidades. E isso, no final das contas, é o que mais importa: quebrar o ritmo da vidinha linear, desnaturalizar o cotidiano sofrido das pessoas. Mostrar que tem algo de muito errado, mesmo que não se saiba o que exatamente é o certo e como se chega lá. O que interessa é o irrepresentável da coisa toda, o contato dos corpos, e o corpo na rua.
E esse corpo não era tão pacífico assim, não como a mídia tentou vender, porque por essa mesma ponte fechada, por essa mesma catraca pulada, a galera que há quase uma década luta por uma vida sem catracas já apanhou muito; e se não apanhou dessa vez era porque tinha muita gente na rua, porque o governo, a classe dominante e a mídia viu que não tinha saída, que a massa não poderia ser contida, nem com toda a violência profissionalizada da PM do Alckmin, quem dirá da PM fracote do Colombo. De maneira tal que a Globo e todos os setores reacionários da sociedade preferiram se apropriar do movimento. 
Mas isso não é novidade pra ninguém. A apropriação da resistência faz parte do capitalismo, estão aí a imagem do Che, a moda punk, a revolução russa (apropriada pelo capitalismo burocrático stalinista), entre muitos outros, pra provar isso. Mas também faz parte da multidão – e é isso que, me parece, precisamos ter em mente agora – se refazer em inúmeras formas informes. Por isso é rebelião e não revolução. Por isso as demandas serem tão plurais, elas mesmas inapropriáveis (mesmo com a redução da tarifa, a demanda não acaba nunca). Plural e inapropriável também é a multidão, porque singular e plural, um a um, com suas singularidades, mas também uma coisa só, sem forma. Uma larva e não uma massa, mesmo que pareça massa de manobra, mesmo que se queira massa de manobra, ela nunca será isso, porque é múltipla demais, plural demais, rizomática demais. E pra mim é isso que vai ficar! Pra mim, é isso que aquela foto linda da manifestação de terça-feira (que eu não tenho ideia de quem tirou) mostra. É essa imagem que eu vou guardar, e é por essa imagem que a rua tem que ser tomada, muitas e muitas vezes. Seja lá qual for o governo, seja lá qual for a demanda…

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Sexta às 20:01

 

Retirado de: http://www.facebook.com/anacarolina.cernicchiaro/posts/10151544660933337