Os manifestantes tradicionais, que desde sempre estiveram na rua reivindicando o direitos dos trabalhadores, fazendo as lutas coletivas, tentaram se articular junto ao carro de som. Mas, o vagalhão de gente que assomava, vinha de maneira agressiva, disposto a quebrar todas as bandeiras. O coro de “sem partido” e “enfia as bandeiras no cú”, era puxado por alguns homens estrategicamente colocados no meio da massa. Aos poucos, a maioria foi sendo formada por uma multidão de gente que gritava, hostilizando os militantes do passe livre e os articulados em partidos e sindicatos, exigindo que eles baixassem as bandeiras. Carregando faixas e cartazes que pediam democracia, os manifestantes – paradoxalmente – impediam o grupo de se expressar.
Sem acordo para baixar as bandeiras, uma vez que cada um ali estava se manifestando do jeito que me lhe aprazia, os militantes da luta social e popular organizada se separaram do grupo que os hostilizava. Ficaram em frente ao antigo terminal de ônibus esperando o início da marcha. De novo, um grupo de rapazes fazia a organização dos “apolíticos”. Circulava pelo meio da multidão chamando os “sem partido” para o outro lado. “Quem não tem partido é por aqui”. E a massa acorria, entre milhares de flashes que se consumavam para a devida postagem no facebook.
Quando deu sete horas da noite, o povo decidiu sair em passeata na direção da ponte. A polícia fazia um cordão de proteção, impávida. Tudo era festa. Naquela hora, o grupo dos militantes tradicionalmente organizados, sindicatos, partidos e movimento popular, deu início à marcha, caminhando em direção a ponte que liga a ilha ao continente. Nenhuma reação da polícia. A massa dos “sem partido” seguiu atrás, aos gritos de “vamos cruzar a ponte”. Um pequeno grupo de militantes, com as bandeiras tremulando, ficou parado no meio fio. Foram praticamente acossados pela multidão que os cercava e gritava, a exaustão: “sem partido, sem partido”. Como eles não baixavam a bandeira, começavam as agressões: empurrões, xingamentos, provocações. Uma violenta expressão da intolerância. Perguntei a um pequeno grupo de moças que gritava histericamente.
– Por que vocês são contra os partidos?
– Ah? É porque é sem partido!
– Sim, mas por que?
– É sem partido e pronto. Não fazemos política. Tu tem partido? – me encararam, agressivamente.
Assim, gritavam sem partido porque era sem partido. Tautologia. E diziam não fazer política, fazendo.
A tensão seguiu por todo o percurso, e os manifestantes com bandeiras não as baixaram, mas eram minoria. Entre os organizados “sem partido”, corriam as faixas, camisetas e capas de chuva. Havia ainda outro grupo perdido, sem saber exatamente onde se colocar. Caminharam juntos, num roldão, cada um aparentemente sozinho com suas demandas particulares. Prevaleceu o discurso político do “apolítico”. Ou seja, a luta de classe se mostrou na rua, claramente, sem véus. Só que dessa vez, os que sempre estiveram na rua, enfrentando a polícia e o poder, tinham seus adversários bem ali, junto a eles, gritando-lhes na cara. E a polícia, sempre hostil, “protegendo” os “sem partido”. A fala do coronel Nazareno, comandante geral do Polícia Militar, não podia ser mais explícita. Ao ser perguntado por que a polícia estava fazendo a proteção em vez de garantir o direito de ir e vir dos carros que estavam trancados, sem poder passar a ponte, ele disse: ” Esse não é um movimento particular, de trabalhadores, de sindicatos. É um movimento da sociedade”. Aí está.
A alienação segue sendo o melhor instrumento
O grito das gentes, exigindo que os partidos políticos não se manifestassem não é uma coisa gratuita, inventada pela direita que decidiu entrar de cabeça no movimento. Não. Foi apenas a potencialização de um sentimento que os próprios partidos conhecidos como esquerda – em sua grande parte – permitiram que brotasse. Desde há muito tempo que esses partidos desistiram do trabalho de base, que foi tão importante para preparar a democratização do país depois de tantos anos da violência da ditadura militar. O PT, que hoje está no governo, também é em grande parte responsável por essa “bandeira” que se mostrou na rua. Muito antes da chegada ao governo já havia diminuído o trabalho na base e, ao assumir o governo, investiu muito mais na cooptação do que na educação para a emancipação. Depois, negando-se a enveredar pelos caminhos de uma transformação mais profunda, que atingisse a estrutura dos problemas, igualmente mascarou os problemas, preferindo apostar numa perigosa bolha de “desenvolvimento” sem politização.
No mundo sindical e no movimento social também houve uma grande desaceleração da formação política, muita gente aderiu a defesa das políticas do governo, permitindo que as fronteiras do que se conhece como direita e esquerda fossem ficando cada dia mais pálidas. Mesmo os partidos mais à esquerda, que conseguiram permanecer críticos, não apostaram na formação e no trabalho de base, não conseguiram se aproximar das gentes que passaram a viver a apoteose do consumo. Não se prepararam para um debate qualificado. Qualquer “esquerdinha” que viesse com críticas a esse modelo de crescimento e de consumo era logo rechaçado como “os do contra”.
Agora, quando a bolha de crescimento começa a murchar, a boa e velha classe média começa a se amedrontar. Os meios de comunicação de massa, que são os ventríloquos do sistema, passaram a fermentar ainda mais esse medo e, numa virada eficiente, começaram a capitalizar para a classe dominante as grandes mobilizações que começaram a surgir pela diminuição da tarifa. Com a introdução do também antigo discurso usado pela direita do “contra a corrupção”, a alienação passou a tecer sua teia. Quem não se lembra da lavagem cerebral do “contra a corrupção e fora marajás” que levou Fernando Collor à presidência do Brasil, em 1989? Foi igualzinho. De repente, do nada, do fundo das Alagoas, surge um jovem político fazendo discurso contra a corrupção, despolitizando o debate, tirando o foco dos grandes problemas estruturais do Brasil. Era o bonitinho da elite, prometendo acabar com os corruptos. Obviamente não o fez. Pelo contrário, foi deposto por corrupto. Mas essa história parece nunca ter sido contada aos milhares de jovens que agrediam os militantes que insistiam em carregar suas bandeiras.
E assim, o que vai tomando conta das cabeças é de novo esse discurso vazio, raso, sem sentido. Um “contra a corrupção” que se levanta contra uma ou outra pessoa, particularizado e roto. Não há uma compreensão do que seja de fato a corrupção real, a que enfraquece a soberania de um país. A que é cometida pelos grandes bancos, pelos sistema financeiro, pela elite dominante. Então, paga-se o preço do trabalho de formação que não é feito e da nossa incapacidade de construir um partido revolucionário de verdade.
A luta de classe não é só um passeio na chuva, com batalhas de palavras de ordem. Mas isso é a expressão concreta das divergências sobre o tipo de sociedade na qual grupos distintos querem viver. Esse confronto verbal – e em alguns momentos físico – explícito na rua deve servir para que esquerda real se reorganize, com muito trabalho e muito estudo. É hora então de os partidos, sindicatos e movimentos populares organizados analisarem suas práticas, ajustarem suas bússolas, recuperarem o trabalho na base. Os 10 anos de governo do PT, (reconhecido como partido de esquerda), com seus “estranhos” aliados ( PC do B, PMDB, PSC e outros minúsculos, reconhecidamente conservadores) amorteceram a luta, confundiram as gentes. Agora, a velha direita arreganha os dentes e se prepara para o ataque. É hora de destruir a “estrela da morte”. O faremos?
Elaine Tavares