‘Não há problemas técnicos nem financeiros pra implantar a Tarifa Zero’

Após provocar uma semana de históricas convulsões sociais que continuam chacoalhando o país, o Movimento Passe Livre obteve sua primeira vitória em praticamente dez anos de luta contra os preços e reajustes das tarifas do transporte coletivo.

Para analisar o assunto, que seguirá em foco, o Correio da Cidadania entrevistou Lucio Gregori, ex-secretário de transportes de Luiza Erundina e um dos precursores do projeto Tarifa Zero, no mandato petista na cidade de São Paulo da virada dos anos 80 para os 90.

Para ele, não restam dúvidas de que o passe livre não é nenhuma utopia de jovens “vândalos” e “desocupados”, como gostava de cunhar a mídia, até ser posta de joelhos e mudar seu tom. Inclusive, a extinção da tarifa reduziria outros custos operacionais em geral excluídos do debate.

Por fim, escancara um impressionante detalhe que continua despercebido: a Lei de Mobilidade Urbana, sancionada pela presidente Dilma. “De acordo com essa lei, os contratos de concessão podem ter duas tarifas: a tarifa de remuneração ao empresário, que corresponde ao custo operacional do serviço; e também a tarifa pública, aquela que o usuário paga. Ou seja, a tarifa pública é decidida pelo poder público”, explica. Isso significa que zerá-la é uma questão de vontade política, que sequer deixaria de remunerar o concessionário.

A entrevista completa com Lucio Gregori pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Como você tem visto os atuais protestos por todo o país, que tiveram como propulsores a luta por menores tarifas de transporte (ou tarifa zero), ao lado das melhores condições de transporte?

Lucio Gregori: Penso que, finalmente, está se fazendo uma pauta de discussão sobre os transportes coletivos no Brasil, que são muito ruins e caros, razão pela qual a grande maioria das cidades brasileiras apresenta enormes congestionamentos, altos níveis de poluição e acidentes de trânsito.

Finalmente, os jovens do Movimento Passe Livre (MPL), e outros movimentos políticos e sociais, conseguiram pautar o assunto.

Particularmente, mostraram que, sem transporte bom, e acessível a todos (portanto, fortemente subsidiado, no limite chegando à tarifa zero, a ser patrocinada pela sociedade, tal qual a saúde, educação e segurança públicas), nós não vamos progredir neste terreno.

Correio da Cidadania: Como surgiu a ideia da tarifa zero, à época da gestão Erundina?

Lucio Gregori: Por duas coisas muito simples. Primeiro que a tarifa, pra ser arrecadada, já tem um custo. Uma parte do gasto técnico e estrutural pra arrecadá-la já é algo mal resolvido. Em segundo, a própria catraca do ônibus ocupa três ou quatro lugares, diminuindo a oferta do transporte. Em terceiro, a tarifa no Brasil é altíssima para que as pessoas sem recursos suficientes possam realmente usufruir o que a cidade oferece.

Foi proposta uma reforma tributária pela prefeitura daquela época, uma reforma progressiva, no sentido de “paga mais quem tem mais, paga menos quem tem menos, não paga nada quem não tem nada”. Com isso, seria feito um fundo, que bancaria a gratuidade, sem prejuízo dos outros serviços da prefeitura. Essa proposta foi aprovada por 76% da população, em novembro de 1990, em pesquisa feita pelo Instituto Toledo e Associados.

Fica claro que quando o assunto é bem colocado e discutido, a população compreende muito bem e se mostra interessada em ter a tarifa subsidiada.

Correio da Cidadania: Qual a relação da atual luta pelo passe livre com essa ideia da tarifa zero? Trata-se esta atual luta de uma resposta à derrota da tarifa zero no passado?

Lucio Gregori: Creio que, nesse sentido, houve um grande avanço. Porque, bem ou mal, no caso da tarifa zero com a Erundina, foi uma iniciativa de governo. E talvez, a despeito do apoio de movimentos populares na época à tarifa zero, como não se notava tanta corrupção, como hoje em dia, a Câmara dos Vereadores se deu o direito de não aprovar o projeto.

No entanto, creio que tais manifestações são fruto de um trabalho longo. Eu convivo com os jovens do MPL há oito anos, pelo Brasil afora, fazendo palestras, debates, e eles adotaram a ideia do passe livre universal (inicialmente, passe livre estudantil). Eles estudam muito, são muito preparados a respeito do assunto, razão pela qual os governantes, tanto Haddad quanto Alckmin, foram incapazes de dar um encaminhamento positivo logo no início. E, agora, as manifestações já escaparam completamente de seu propósito inicial.

Importante foi o apoio popular, como mostraram as pesquisas, com pelo menos 60% das pessoas apoiando as manifestações pelo passe livre.

Correio da Cidadania: Há condições técnicas efetivas para já viabilizar esse objetivo, ou seja, partir do recuo no aumento de tarifas para a tarifa zero?

Lucio Gregori: Não há mistério algum nisso, condições técnicas mais do que existem. Basta ofertar a quantidade necessária de veículos para transportar uma demanda que vai crescer muito, porque a tarifa represa a demanda, e o sistema funciona normalmente, a exemplo da coleta de lixo, que não é paga diretamente. Não existe problema algum em fazer a tarifa zero. Simplifica muitas coisas, não precisa ter controle de arrecadação, controle digital (como querem fazer com o bilhete único em SP). Isso é muito mais complicado, custa dinheiro até para organizar a forma de arrecadação, dificultando a vida de todo mundo.

E do ponto de vista operacional, tampouco seriam necessários terminais de ônibus separando quem pagou de quem não pagou. Portanto, o  único problema é convencer aqueles que têm mais dinheiro na sociedade a ajudarem aqueles que não têm tanto dinheiro. É isso.

Correio da Cidadania: A mídia comercial, por exemplo, e também o governo, já insistem nas medidas ortodoxo-financeiras, salientando a necessidade de aumento de impostos e/ou redução de investimentos para diminuir as tarifas, dentre outros. Ao mesmo tempo, sabemos das quantias astronômicas gastas com o serviço da dívida do município, fruto de uma renegociação feita de modo lesivo aos interesses municipais. O que diria quanto às condições financeiras das prefeituras, a de São Paulo, no caso, para levar adiante o passe livre?

Lucio Gregori: A verdade é a seguinte: não defendo aumento de imposto. Defendo justiça de imposto. Paga mais quem tem mais, paga menos quem tem menos. E em vários lugares não é sequer necessária uma reforma tributária. Há, ainda, outros mecanismos hoje disponíveis para uma engenharia financeira sem muito mistério. O Brasil gasta 150 bilhões de reais por ano em juros e, quando aumenta a taxa de juros em 0,75 por cento, gasta 20 bilhões de reais a mais por ano.

Portanto, tenhamos um pouco mais de seriedade nos debates, senão fica uma discussão de “competência técnica”, disso e daquilo outro, que no fundo esconde o interesse daqueles que têm muito dinheiro neste país e não querem dar um pouco da enorme parte que possuem.

Até aqui o Haddad não falou muita ‘coisa com coisa’ a respeito da dívida municipal. Eu tenho sugestões para a tarifa zero, mas não fui eleito prefeito pra resolver esse problema financeiro da cidade. O Haddad é que foi. E o Alckmin também, no caso, eleito governador. Portanto, eles têm de encontrar saídas. Possuem um aparato técnico gigantesco que pode ajudar na formulação. Se quiserem ajuda externa, podem nos chamar, de graça.

Mas não somos nós, que não fomos eleitos, quem temos de fazer todo esse equacionamento.

Correio da Cidadania: Uma última palavra a respeito do peso dos subsídios às empresas concessionárias na composição da tarifa: uma revisão dessas taxas não seria essencial, especialmente agora que se anunciou a queda da tarifa? Não seria este o caminho alternativo lógico aos aludidos cortes nos investimentos, tal qual já anunciaram tanto Alckmin quanto Haddad?

Lucio Gregori: Nesse sentido, cabem algumas colocações. Primeiramente, a forma com que ambos, governador e prefeito, anunciaram a revogação, quase punitiva: ‘abaixamos, mas vocês pagarão por isso’, é a primeira impressão. Foram declarações que apequenaram o gesto deles.

Em relação aos subsídios, não tenho em mãos planilhas e números do governo estadual e da prefeitura. Mas posso levar mais em consideração os ônibus, cujo esquema de gestão conheço mais. Sobre os trens e metrô, deixo um pouco mais de lado, pois nunca vi números e tabelas oficiais.

Sobre os ônibus, inicialmente a pergunta é: qual a taxa de remuneração de capital dos concessionários? Sabemos que são empresas gigantes, com frotas de 4, 5 mil ônibus no Brasil todo, muito poderosas economicamente. Impor, ao menos temporariamente, uma redução do lucro de tais empresas simplesmente não prejudicaria ninguém, nem usuários nem concessionários. Eles têm muita robustez econômica, de modo que seria o mais sensato, ao menos enquanto não se realizam debates maiores com a sociedade, segurar um pouco a taxa de lucro deles. Sem dúvidas, reduzir essa lucratividade não traria nada de anormal pra eles, não haveria nenhum prejuízo.

Agora, precisamos debater outro ponto mais a fundo: como, realmente, funcionam as concessões das empresas de ônibus? O secretário dos transportes explicou que 50% da remuneração aos empresários se dão pelo custo operacional, ou seja, aquele investimento que faz os veículos circularem, custeando seus pneus, gasolina, trabalhadores etc. Os outros 50% vêm por usuário transportado. Ora, se o custo operacional já está pago, o custo marginal de um passageiro é nulo, ou seja, os ônibus custarão aquilo que é o custo operacional do sistema. Transportem passageiros ou não. Já está pago tal custo.

Diante disso, podemos dizer que é preciso discutir mais amplamente esse modelo contratual. É indispensável fazer uma ampla discussão sobre o modelo contratual em São Paulo.

Por fim, é preciso dizer algo importante: hoje em dia, existe a Lei de Mobilidade Urbana, que foi sancionada pela própria presidente Dilma. De acordo com essa lei, os contratos de concessão podem ter duas tarifas: a tarifa de remuneração ao empresário, que corresponde ao custo operacional do serviço; e há também a tarifa pública, isto é, aquela que o usuário paga. Ou seja, a tarifa pública é decidida pelo poder público, independentemente da tarifa de remuneração.

A tarifa que garante o equilíbrio do contrato é a de remuneração. A tarifa pública é decidida pelo poder público. A tarifa pública (valor a ser pago pelo usuário) poderia, portanto, ser decidida pelo poder público. E a prefeitura ou governo estadual podem, inclusive, decidir cobrar mais caro do usuário, caso pretendam arrecadar mais – o que de modo algum é o caso. Ou podem decidir que a tarifa pública é, no limite, zero. Esquema esse que não tem nada a ver com o custo da operação, que já está garantido pela tarifa de remuneração. Depende só do poder público cobrar ou não essa tarifa. Quem não entendeu pode perguntar: mas de onde vem a remuneração ao empresário? Através do pagamento feito pelo poder público que o contratou. E isso, obviamente, não tem nenhuma relação com o número de passageiros transportados, nos termos falados pelo secretário de transportes, como acima citado.

É tudo tão óbvio! Não dá pra acreditar como essa lei não está sendo levada em conta. O poder público não poderia decidir isso exclusivamente em seu âmbito, com seus técnicos e administradores, sem debate algum com a sociedade. Onde está a democracia participativa? Não podemos debater essas questões todas com os governantes? Por quê?

Portanto, ter ainda de trazer à mesa a questão da Lei de Mobilidade Urbana é sinal notório de como estamos completamente atrasados em todo esse debate a respeito dos transportes coletivos em São Paulo.

Escrito por Gabriel Brito e Valéria Nader.

Retirado de: http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=8507%3Amanchete210613&catid=63%3Abrasil-nas-ruas&Itemid=200

Isso é sim sobre 20 centavos: conservadorismo nos movimentos sociais.

Existe uma estrutura construída socialmente ao longo da história. Essa estrutura permeia e media todas as nossas relações, em todos os âmbitos, desde nossas relações pessoais com nossa criança que ainda nem nasceu, até as impressões internacionais das pessoas de outras nações que nunca conheceremos na vida. Esta estrutura se constrói na história através do poder, porque ela é uma estrutura que se estabelece através da retenção. Estamos falando do Estabelecimento — um conceito utilizado principalmente por anarquistas para grifar os caraceteres intersecionais de nossos esforços contra o Capital, o Estado, e qualquer outra forma de opressão.

Quando nos organizamos no feminismo contra o patriarcado, por exemplo, podemos incorrer no erro de fazê-lo esquecendo-se e invisibilizando a realidade de muitas1013910_450651248383840_1593551519_nmulheres, nomeadamente como apontaram correntes como o feminismo negro e o transfeminismo. Isso significa que estamos reproduzindo uma forma de poder para chegar ao desmantelamento de outra. O que significa que caso vençamos, teremos subjugado a outra classe. Suponha que o feminismo tenha grandes vitórias deste ano para daqui a dez anos. Se ele tiver ignorado as realidades de mulheres negras proletárias, é bem possível que gigantesca parte de suas conquistas não atendam as suas realidades e, portanto, tenha resultado em conseguir direitos que estabelecem a mulher branca e burguesa acima da mulher negra e proletária. Por mais que vários dos direitos conquistados possam servir também a mulher negra e proletária, a ausência de consideração do outro lado faz com que o tempo de luta resulte em deixar mais abaixo estas mulheres, porque os direitos avançaram as deixando para trás.

“Se o poder fosse somente repressivo, se não fizesse outra coisa a não ser dizer ‘não’, você acredita que seria obedecido?” — Michel Foucault

Isto acontece porque o poder se articula de forma a beneficiar e a reprimir. Por mais que estejamos lutando para que o preço da passagem abaixe, as realidades de quem realmente precisa que a passagem caia faz invisível o fato de que isto é sim sobre vinte centavos. É justamente a perspectiva não-intersecional, que ignora a realidade da população periférica e proletária, que nos faz acreditar que isto é mais sobre corrupção do que sobre vinte centavos. Porque a gigantesca maioria de quem está alí realmente não irá precisar entrar em pânico porque vinte centavos aumentaram, então imediatamente ser somente sobre vinte centavos torna-se um problema. A ampliação das preocupações, para além do preço da tarifa, parece ser um grande avanço e uma melhora. Esta é uma falsa ilusão gerada pelos privilégios que se impregnam nos movimentos sociais, porque quando você troca vinte centavos por “corrupção” você não está ampliando o alcance, você está reduzindo. Você está tirando de uma questão objetivamente monetária, que atinge objetivamente quem não possui tanto dinheiro quanto você para uma questão patética como a “corrupção”, pela qual ninguém é a favor, e que é característica indissociável da democracia representativa capitalista.

Vamos falar sobre cooptação

Quando existe aderência massificada da população, e esta população não se politizou ainda, ela infla o protesto com discursos ideológicos. Ela enche o protesto de muito pacifismo, muitas reivindicações vazias (contra a corrupção! pela educação!), de bandeiras de Brasil beirando o nacionalismo de cantarmos o hino nacional, e, principalmente, de discursos opressivos, que se já entre as pessoas “politizadas” são sempre prevalentes, entre pessoas que não se politizaram são ainda mais. O machismo, o racismo, o heterossexismo e o discurso higienista burguês são alguns problemas que cada vez mais aparecem relatos de estarem surgindo nestas manifestações recentes, inclusive nos cartazes que estamos segurando e nos gritos que estamos bradando.

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Não se trata de elitizar o movimento e abandonar tudo, saindo fora porque “virou manifestação de direita”. O conservadorismo está aqui e estará de novo da próxima vez que houver grande aderência ao protesto. Se trata de discutir isto com as massas de forma a empoderar quem está ficando no esquecimento. Se trata de unir-se e organizar-se de forma a reagir dentro da própria luta. Se trata de abrir-se a pessoas aliadas que possam ajudar a articular discursos de resistência dentro da própria luta. Será completamente inútil abandonar o fronte. É preciso ser o contra-protesto. É preciso ser quem irá tentar radicalizar lá dentro, seja no discurso — questionando os discursos opressivos e reacionários que surgem –, seja na materialidade das ações radicais, seja na contestação firme de quem está tentando apaziguar as massas, seja no suporte imediato e vocal à vítima quando alguém estiver praticando discriminação ao seu lado. Não se cale. Ao invés de abandonarmos o movimento, é preciso organizar ao redor da postura anticapitalista, principalmente enquanto protagonizado pela classe trabalhadora, e ocupar este espaço. Similarmente, diante de atitudes machistas, ao invés de abandonar o movimento, de acordo com a disposição de cada pessoa, é preciso organizar-se conjuntamente, principalmente enquanto protagonizada por mulheres, e ocupar o espaço e afirmar-se enquanto pessoa que não aprova. É preciso construir a luta na própria luta. Nossa militância não pode ser um esforço de persuasão, mas sim uma tática de resistência por insurreição. Recebo ao meu lado pessoas aliadas porque sei que é interessante para questionarmos a opressão ao vivo e a cores, mas estas pessoas precisam entender a cultura de protagonismo e de responsabilidade que estão envolvidas ao colocarem-se como uma pessoa aliada destes combates.

Será por acaso que Arnaldo Jabor e Rafinha Bastos agora estão do nosso lado?

Se você tem essa disponibilidade, esteja lá. Tente organizar-se junto com pessoas comprometidas a questionar estas posturas conservadoras, principalmente as posturas opressoras, burguesas e pacifistas. Tem gente interessada? Traga pra junto. Forje na luta o questionamento. Levar o transfeminismo ao olho do furacão. Levar o antirracismo enquanto questionamento. Questionar como quem resiste, não como quem convence. Precisamos superar através de união intersecional e empatia de fato, porque o reacionarismo precisa ser contestado para que de marcha em marcha, por mais diversos que sejam seus tópicos, estas contestações saltem. Assim como o mesmo espírito nacionalista e pequeno-burguês estava nas marchas contra a corrupção, o mesmo espírito libertário precisa permear cada protesto e questionar a opressão em todos eles. Criar uma cultura libertária é uma urgência, principalmente diante da cooptação que o Estabelecimento faz de qualquerorganize movimento que surge, justamente porque são as relações de privilégio que mediam as interações sociais. A cooptação é muito mais simples quando feita articulando a Ideologia. Quando você fala sobre partidos “cooptando” a luta, alguém ri dentro do seu túmulo. Neste caso específico, partidos de esquerda não estão cooptando nada porque estão articulando uma teoria crítica ao que a maioria das pessoas que ali estão discordam. Cooptar a luta é o que faz o conservadorismo, e faz muito bem, porque ele é o padrão. Antes de pensarmos sobre as coisas, 100% de nós concorda com o que o conservadorismo tem a dizer. Ele é a base sobre a qual se assenta nosso discurso. A sua mera presença é cooptação. Por isso é tão urgente questioná-lo — em nós, e em todas as pessoas.

Pasmem: A corrupção não é o problema

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(Foto: Marcelo Gigante / RJ)

Protestar contra a corrupção é como protestar contra a fome. Seu alvo está errado, seu resultado será nulo. E se for algum, não será pra quem precisa. O Estabelecimento quer um movimento contra a corrupção e pela educação porque nenhum pilar estará ameaçado por boas escolas e políticos que não se corrompem. Os políticos continuarão a legislar pelo Capital, porque também é assim nas veneradas democracias europeias  supostamente “não corruptas”. A educação continuará a formar cidadãos para o Capital, para atender os interesses e as demandas do mercado. O Estabelecimento quer um movimento contra a corrupção porque se a contestação está no alvo errado, e contesta algo que fundamentalmente não representa mudança, então não sairá pedra de cima de pedra. O Estabelecimento quer um movimento contra a corrupção e pela educação porque ele pode atender 100% dessas reivindicações sem se abalar nem um pouco. Ele pode dar ótimas escolas e reduzir muito os níveis de corrupção, e continuar a ser uma plutocracia capitalista. Fazer reformas políticas contra a corrupção é meramente comprar o velho chavão de um Arnaldo Jabor indignado porque o PT roubou, e se esquecer que existe uma estrutura gigantesca, da qual o PT sequer é o maior beneficiário. O Estabelecimento também inflama as massas a se organizarem contra algo: contra algo completamente irrelevante.

Ninguém discorda da corrupção ser um problema. Ou de que a educação precisa melhorar. O que isso significa? Significa adesão em massa, onde nenhum privilégio precisa ser questionado. Protestos contra causas que são consenso não precisam colocar opressões em xeque. Que pautas e demandas surgem de um movimento conservador? Estas. E estas somente. Visivelmente, qualquer pauta que nomeie opressões, é imediatamente uma pauta egoísta: os transativismos são egoísmo, porque você está se preocupando somente com você e com as outras pessoas trans*. Deveria preocupar-se com algo que atinge todo mundo, como a corrupção. Um movimento conservador é completamente contra qualquer bandeira de qualquer partido, mas não propõe nenhuma forma de organização política no seu lugar. O anarquismo possui críticas para fazer a estas vanguardas, mas entre bandeiras de partidos e o completo vazio apolítico feito de esperança e algodão doce que aqui está disposto, vale mais ficar com as bandeiras vermelhas.

Um movimento nos moldes do inimigo

O Estabelecimento quer um movimento que acha que o “Brasil acordou” porque esse é um movimento que não conhece seu lugar na história, e as lutas que o colocam ali. Ele quer um movimento que acha que o “Brasil acordou” porque movimentos sem perspectiva histórica repetem os mesmos erros, e repetem os mesmos discursos, de quem dentro dos outros movimentos os fez institucionalizar e estabilizar junto ao poder.Achar que o Brasil acordou só agora é esquecer-se que as feministas estavam lutando, e portanto ignorar o que elas tinham a dizer, e fazer sua pichação misógina.934998_498006496937217_1131706862_n

Achar que o Brasil acordou só agora é esquecer-se que o movimento sindical está fazendo greves há tempos, e você estava reclamando. Quando a sua geração acordou, não significa que o Brasil acordou. Muitas lutas estão aqui, ao nosso lado, e se nãoacordamos para elas, nós somos justamente contra quem elas estavam acordadas. O Brasil não acorda, junto, homogeneamente, quando acorda em massa para algo específico. Se isto é acordar, então nunca dormimos. As opressões são diversas, e é preciso acordar para todas elas.

O Estabelecimento quer um movimento que apoia, abraça e se solidariza com a PM porque o poder não quer um movimento que apoia, abraça e se solidariza com a população periférica, proletária e negra. Porque quem quer dar flores à polícia se esqueceu que, há pouco — muito pouco — tempo atrás, quando estávamos enfurecidamente contra o que aconteceu na Aldeia Maracanã, quem estava lá era a PM. Porque quando nos enfurecemos com o que aconteceu em Pinheirinho, quem estava lá era a PM. É muito simples particularizar o que a PM faz aqui ou ali quando o que a PM faz de fato não está debaixo da sombra de nenhum iPhone ou nenhuma Nikon. Lá, nas periferias, onde a violência policial é mais brutal, e completamente ignorada, a PM está praticando seu fascismo diário contra os “bandidos” que um protesto conservador odeiam. Se o trabalho da polícia é atender os interesses do Capital, isto é, defender a exploração da classe trabalhadora, como poderia a polícia ser a classe trabalhadora? Quem considera a polícia com bons olhos é quem não está à margem de suas violências. Eis aqui uma margem para você: ter empatia por estas realidades, e parar de aplaudir estas violências.

“Polícia é pra bandido, pra estudante não!”, cantava a multidão, ontem, ao meu lado. “Eu entrei na PM pra prender bandido”, dizia no vídeo o policial, às lágrimas, aplaudido por quem chorava, emocionadamente, junto.

Ir às ruas por ir às ruas, não é acordar. Uma multidão de milhões pode estar nas ruas, isso ainda não será acordar. Existe uma ideia perene de que é preciso ir às ruas só por ir às ruas, e ela convence muita gente. E elas vão. Mas porque estes espaços não são espaços de contestação, porque estes espaços não são espaços organizados ao redor de algum assunto pontual, de fato nada é discutido. Esta é a cooptação que acontece por parte do conservadorismo

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Quando o Movimento Passe Livre propõe um debate extremamente pontual sobre a tarifa zero, e demanda barrar o aumento, uma classe média injuriada salta às ruas e manda na lata: “não é só sobre vinte centavos”, porque para ela, vinte centavos é muito pouco.

Mas isto é sim sobre vinte centavos.

Ir às ruas por ir às ruas não é acordar. Independente do número de pessoas. É preciso ocuparmos estes espaços, reagirmos dentro deles, levarmos discussões pontuais — como era a proposta do MPL — e resistir aos desvios que acontecem porque o Estabelecimento prioriza quem não precisa daquelas demandas. Há de se discernir pessoas aliadas de pessoas que não se importam. Marchar pode ser romântico, mas não é radical. Um milhão de pessoas sem nada a dizer, sem privilégios a questionar, sem questionamentos a fazer, sem patrimônios a quebrar, sem tópicos a discutir, não é uma multidão acordada. É, no máximo, um gigantesco episódio de sonambulismo político.

 

Retirado de: http://incandescencia.org/2013/06/18/isso-e-sim-sobre-20-centavos-conservadorismo-nos-movimentos-sociais/

22 de junho, 2013: “revolta do vinagre”

Meus queridos, sei que muita gente anda insatisfeita com os rumos tomados pelos protestos. Ando também com um certo receio de que equívocos maiores sejam cometidos, na medida em que teorias conspiratórias se espalham pelo ambiente virtual, mas não me declaro decepcionado com nada. Apropriando-me do bordão lançado pelo colega Juliano Malinverni, a caminho da passeata, eu entrei nessa sem nenhuma ilusão mas com grandes esperanças. Esperança que aumentou um pouco quando assisti pela televisão ao depoimento de uma adolescente no meio da passeata. Ela dizia, com segurança e naturalidade, quase com essas palavras, que “o mais importante disso tudo é que descobrimos que nós temos poder e que à partir de agora será mais fácil sair às ruas com a ferramenta das redes sociais”. Parece óbvio, não é? Mas a verdade é simples. Ingênuo, na verdade, é quem acreditou que os filhos da conservadora e despolitizada família brasileira ganhariam às ruas conscientes e progressistas. A grande singularidade desta que possivelmente entrará para história como a “revolta do vinagre”, muito mais do que sua pauta difusa, é uma grande aversão à representatividade. E antes que venhamos a falar em facismo, diante das cenas de agressão aos militantes, é preciso aceitar a natureza desse fato, que revela uma parcela da sociedade com a qual os movimentos organizados não têm sido capazes de dialogar, com exceção do MPL (que parece ter uma das chaves para a compreensão). Diante disso, o grande desafio que nos apresenta agora é separar o joio para que o trigo floresça em novas e sadias lideranças, marcadas com o exemplo poderoso desses dias. É uma tarefa pra hoje, mas não acaba com a semana nem com o mês. Não acaba, na verdade.

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Sábado às 11:34

 

Retirado de : http://www.facebook.com/silvio.mansani.3/posts/3202564441134

21 de junho, 2013: “o gigante acordou” ou “o monstro quer nos engolir”?

nas últimas duas semanas, meus sentimentos em relação ao que vem acontecendo no brasil passaram por uma espécie de montanha-russa, como os da maioria dos que conheço e, uma ou mais vezes, foram as ruas e presenciaram toda a panaceia de coisas que vocês já viram em diferentes canais de notícias.
no início, a esperança. o alento de ver uma cidade, mais uma cidade, sair às ruas reivindicando preço justo para o transporte, ou ainda mais, tarifa zero – o que considero ideal, pois pagamos impostos e os serviços essenciais nos devem ser providos. transporte e direito à cidade fazem parte disso. como reação à crítica midiática de que era muito barulho por 20 centavos, movimentos sociais legítimos, com anos de estrada, e muitas outras pessoas, começaram a mostrar que era muito mais do que isso, que havia e há muitas pautas no brasil a serem resolvidas, debatidas, avançadas.
veio nova violação aos direitos humanos, pelo braço armado repressor policial do estado de são paulo, replicado em tantos outros estados. o problema é que a quina do braço armado acertou no olho da mídia. no centro do plim-plim. e vieram os olhos roxos. seguindo os verdadeiros, os embusteiros. “dói em todos nós”. e eis que, em um segundo, a grande mídia, antes indisposta com um bando de “baderneiros”, separou o povo em duas categorias: o “militante”, prontamente associado ao baderneiro, e o “manifestante”, essa figura “da paz”, que só quer “a nação”, para além de partidos.
o vazio deixado por significantes como “a pátria”, “o país”, “nacionalismo”, “patriotismo”, ou ainda, o mais chave deles, o mais repetido à exaustão, “corrupção”, fez-se ocupar prontamente por novas palavras de ordem. muito prontamente, aqueles “que só querem a melhoria do brasil” tornaram-se indispostos “com todos os partidos”. todos, mesmo, será? quem soube jogar xadrez não apenas tirou sua polícia das ruas, deixando o caminho aberto a todo tipo de barbaridade. a barbárie parecia de encomenda. de um momento para o outro, não mais se entendia de onde partiam os tais atos violentos, os quais, à exaustão, a mídia dizia serem de responsabilidade “apenas de uma pequena parcela” dos que estão nas ruas. entorne-se o caldo, portanto, contra eles. associe-se esse eles prontamente à esquerda. associe-se dilma a um governo “de esquerda” e diga-se que a corrupção no brasil foi inaugurada ontem. o circo estava pronto.
no meu estado, duas manifestações, apenas. a primeira, abraçada pela afiliada da globo sob o signo de um “contra a corrupção”, vinha no jornal do almoço na voz de laine valgas como uma festa do calendário típico: “e florianópolis entra para o calendário nacional de manifestações”, debaixo de um sorriso plástico. estive lá, pelo direito à voz, pensando, ainda, em tantos amigos calados pelo aparelho repressor em estados brasil afora, que se mexiam enquanto nós, em florianópolis, apenas assistíamos pela tv. ledo engano. cheguei em casa me sentindo feliz, mas sem entender como havia sido tão tranquilo “invadir” uma ponte que sempre foi ponto de honra para gestões anteriores com o olhar complacente e até com aplausos de alguns policiais.
“quinta vai ser maior”, era tudo o que pensávamos. a isso, somava-se: “foca na tarifa”, “tarifa zero já”, a clássica pauta de transporte urbano e mobilidade que aflige florianópolis desde sempre. algo de podre, no entanto, rondava: cacau menezes chamava os bróders para a rua. o notícias do dia dava o percurso da manifestação em seu site, coisa nunca feita pelo MPL, pois é prática não só para evitar, justamente, o aparato repressor, como, ainda, para que os participantes definam o rumo do movimento. na universidade, meus alunos e os estudantes de graduação e de pós pintavam cartazes, organizavam a mobilização para que o evento finalmente tivesse um foco, para que o pensamento de esquerda desse as caras. nas enquetes no evento de 40 mil confirmados no facebook, no entanto, delineava-se outra coisa. “sem partidos”. saí da ufsc em um ônibus sem pagar sem muita dificuldade – o motorista abriu a porta traseira e encheu. do titri, partiu outro ônibus, que nos deixou de cara com a assembleia legislativa. eu ainda não tinha a dimensão de que a manifestação tinha se rachado em duas, e virado passeata. andava erraticamente com mais amigos pela lateral da manifestação, procurando gente que não estivesse cantando hino nacional, falando simplesmente de “roubalheira” ou achando que a corrupção, mal endêmico, nasceu ontem e tem cara, uma cara, apenas. muitos estavam focados em feliciano, pauta do momento. muito bem. mas enquanto isso, seguiam um fluxo nefasto.
fico sabendo, hoje, que alunos meus tentaram levar a placa do passe livre à frente dessa comitiva que fluiu pela mauro ramos. foram repudiados pelos que iam à frente da passeata, e ao lado da polícia, que diziam que aquilo era, sim, uma “marcha contra a dilma”, nitidamente mostrando a direção que a captura do movimento havia lhe dado. tentaram avisar – e olhe, são garotos com menos de 18 vendendo lucidez pra muito marmanjo – que algo semelhante se vira em 1964. os “anticorrupção” alegavam desconhecer do que eles falavam.
enquanto isso, nos perguntávamos: “onde está o MPL?”. pelo telefone, a resposta: o MPL havia ido direto para a ponte, com os demais grupos de esquerda, que levantavam suas bandeiras. chegamos às pontes, o grupo com bandeiras vermelhas voltava, ao passo que chegava o grupo “nacionalista” pela beira-mar. encontravam-se os dois. brados de “sem partido” eram respondidos com brados dos que chamaram a manifestação e tinham para ela um foco: “sem tarifa”. a polícia, novamente, só assistia, enquanto alguém aproveitava a “marcha anticorrupção” para vender umas “capas de chuva do paraguai – essas são sem imposto!”. não estou aqui invalidando uma centena de pautas igualmente importantes que se levantaram nos movimentos. no entanto, muitos focos andam redundando em foco nenhum. ou ainda, no aproveitamento de um descontentamento de massas em direção perigosa.
o cansaço, aliado à chuva, ia pegando os militantes que voltavam da ponte para o terminal velho, para deliberar o que fariam: um catracaço no ticen – uma vez que não há sentido protestar contra um transporte sucateado, caro e ineficiente e voltar para casa pagando por ele – ou uma ida à prefeitura (houve quem falasse em ocupação, ideia um tanto inócua quando se está molhado e naquele estado).
cansado e desiludido, triste até os ossos vendo uma manifestação popular se transformar numa final de copa, num planeta atlântida ou num festival de fotos da ponte para o instagram, e mais, vendo que se apropriavam de uma série de inocentes úteis para legitimar a instabilidade gerada país afora, fui para casa. disposto, sim, ao catracaço. ao chegar ao terminal, nova surpresa: os portões abertos. volta para casa de graça para todo mundo. patrocinada por quem? pela prefeitura, que ainda mantém um sistema de transporte precário e ameaça jogá-lo ao domínio de um empresário apenas, com a próxima licitação, de cuja transparência ainda não podemos ter certeza. uma certeza temos, apenas: a família amin, que sempre esteve nos mandos oligárquicos deste feudo chamado santa catarina, tem participação na prefeitura. e parte nas empresas que atualmente fazem nosso transporte coletivo.
voltava para casa pensando: fomos engolidos. os que sempre lutamos, desde 2004, por um novo modelo de cidade, os que apanhamos da polícia em diferentes atos do passe livre deflagrados aqui desde então, os que já acumulamos vitórias e tentamos ampliar um movimento de feição popular e democrática, graças ao “bom trabalho” dos veículos de imprensa e dos oportunistas de plantão que aproveitam tão bem as inclinações dessa massa para levá-la a se achar politizada porque está indo para a rua, porque acordou um gigante que hoje tem mais cara de monstro.
quero muito estar enganado. quero muito acordar do que uma hora pareceu um sonho e hoje parece só incerteza e ameaça. o fascismo, alguém bem disse, é metamórfico. e espraia seus tentáculos a todos os lados, agora.
por ora, tenho a dizer que, nos modelos em que as coisas estão, sem freios e sem rumo, NÃO SAIO MAIS ÀS RUAS. nunca fui o maior defensor dos partidos políticos como os temos, tanto que não sou filiado a nenhum. no entanto, já vimos antes o filme do brasil sem partidos – e ele foi nefasto. precisamos de mais democracia, e não de menos. precisamos de democracia de fato, transparência e participação popular, e uma participação construída com estudo e posicionamento, não ao sabor das ondas e da fugaz criatividade de levantar um cartaz. precisamos, sim, de educação, saúde, transportes, igualdade. mas se a história tem uma lição a nos dar, esta é: não é um regime totalitário que vai nos dar isso.
estejamos alertas, muito alertas, meus amigos.

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Sexta às 19:58

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